Ter pra te dar

As Viagens de Paulo
3 min readDec 8, 2021

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Você sabe, Gabriela, que quando eu gosto de uma música eu a ouço durante dias até que letra e melodia percorram todas as minhas ideias. Lembra como fiquei meses ouvindo Asas da Lueiji Luna ano passado? Lembra quando ficávamos ouvindo Canções de Apartamento? Enfim, lembra?

A primeira vez que eu ouvi Martins eu fiquei catatônico. A cada verso que se sucedia eu sentia uma sinestesia profunda, como se fosse sentindo um toque suave com sabor de baunilha em meus ouvidos. Aos poucos senti-me envolvido por toda a maciez daquele timbre que parecia encontrar com a minha respiração afinação profunda. Eu tinha encontrado, mais uma vez, uma música para me explicar, mas eu sei que isso talvez não faça muito sentido pra você, e não tem problema. Nem tudo faz sentido, nem tudo tem sentido e acho curioso que sentido e sentir pareçam ser coisas que não se associem por esses dias.

Eu queria ter pra te dar.

Na verdade, acho que se eu pudesse eu queria ter para dar pro mundo, você sabe, o quanto eu gosto de gente. Você sabe o quanto eu gosto da sensação de me perder em meio a multidão, me encontrar no olhar do homem que catava latas e me entregou duas para fazer tcha tcha depois de dizer que tamo junto. Você sabe.

Você sabe.

Eu queria ter pra te dar.

Mas agora eu não tenho. E parece incoerente dizer que não tenho pra dar quando tenho tanto para o mundo, mas não é uma questão de quantidade, e desconfio também que não seja nem uma questão de qualidade, mas de disponibilidade. Talvez, quer dizer muito provavelmente, eu não tenha mais o que você precisa. Ainda que eu te dê o meu amor, ainda que eu te dê a minha atenção, ainda que eu te dê o meu tempo, nada disso vai te oferecer o que você precisa. Ainda que eu ache que eu seja a pessoa certa, exercício narcísico é claro, creio que não exista mais um presente. Acho que ficar com o que temos de passado é melhor do que insistir num futuro que é delírio. Afinal, o futuro é um delírio de qualquer forma. O mundo vai acabar mesmo, eu já cansei de ser o pessimista que fica defendendo suas ideias fatalistas vestidas de sarcasmo e ironia. Eu realmente acho que a terra vai acabar e a gente está perdendo tempo com todas as discussões inúteis que nos cercam. Eu queria ter pra te dar, mas não tenho.

Você tem razão. Eu não soube ser o que estava ao lado, eu só sei cuidar. Eu posso virar uma noite, eu posso cozinhar, cuidar, limpar, zelar, prover, mas eu não sei estar ao lado. Sempre à frente ou atrás, poucas vezes ao lado. Entregando o que não tinha, lutando pra ser estável, reto, constante, incansável, e falhei em tudo. E não que eu fosse incapaz de sê-lo, mas por fazê-lo pelos motivos errados, com as motivações erradas, pelo verniz no ego, pela falta que tive durante toda a vida. Uma grande conclusão entender que entreguei mais o que me faltou do que o que eu podia ter pra te dar.

Eu queria ter pra te dar.

Eu queria te contar incontáveis mentiras. Queria poder dizer que tudo ficará bem, que sairemos íntegros, que não haverá dor, que não haverá sofrimento, que tudo será confortável, que os dias serão interessantes, que as noites serão felizes, que o incômodo e o estranhamento durarão só até o próximo golpe de vento, mas eu não posso. Eu queria ter outras coisas pra te dar, mas eu não tenho.

Mas eu queria mesmo ter pra dar.

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